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Postado por JOSÉ quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Revista Brasileira de Reumatologia

versão impressa ISSN 0482-5004

Rev. Bras. Reumatol. v.47 n.6 São Paulo nov./dez. 2007

doi: 10.1590/S0482-50042007000600005

ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE

Associação de imunodeficiências primárias com doenças auto-imunes na infância

RESUMO

INTRODUÇÃO: Sintomas musculoesqueléticos podem representar a primeira manifestação de imunodeficiências humorais primárias. A freqüência de deficiência seletiva de IgA em pacientes com artrite idiopática juvenil (AIJ símile) e lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) é de 2% a 4% e de 1% a 4%, respectivamente.
OBJETIVO:
Descrever pacientes que apresentaram artrite como primeiro sinal de uma imunodeficiência humoral primária e determinar a prevalência de deficiência seletiva de IgA em pacientes com diagnóstico de AIJ e LESJ.
PACIENTES E MÉTODOS:
Entre janeiro de 1983 e dezembro de 2006, 4.876 pacientes foram acompanhados na Unidade de Reumatologia Pediátrica. Uma avaliação retrospectiva foi realizada em pacientes que apresentaram artrite como primeira manifestação de imunodeficiência. As imunodeficiências humorais foram classificadas em: deficiência seletiva de IgA, hipogamaglobulinemia e deficiência de subclasses de IgG.
RESULTADOS: Onze (0,2%) pacientes apresentaram imunodeficiências humorais: deficiência seletiva de IgA ocorreu em oito, imunodeficiência comum variável em dois e deficiência de subclasses de IgG em um. Cinco dos 11 pacientes apresentaram artrite aguda e seis apresentaram artrite crônica não-erosiva (AIJ símile). Dosagem de imunoglobulinas foi realizada em 70 dos 253 pacientes com AIJ e deficiência seletiva de IgA (IgA sérica < 7 mg/dL) foi detectada em 6 (8,5%) – AIJ símile. Dos 45 pacientes com LESJ, com dosagem de IgA realizada, 3 (6,6%) apresentaram deficiência seletiva de IgA.
CONCLUSÃO: O presente estudo descreveu baixa prevalência de imunodeficiências humorais primárias em pacientes com doenças reumatológicas. Entretanto, a associação entre doenças auto-imunes e imunodeficiências sugere semelhanças em sua etiopatogenia e deve incentivar estudos prospectivos para investigação desta hipótese.

Palavras-chave: artrite, artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sistêmico juvenil, imunodeficiência.

INTRODUÇÃO

As doenças reumatológicas da faixa etária pediátrica podem estar relacionadas com uma grande variedade de causas e diversas manifestações musculoesqueléticas e podem representar a primeira manifestação clínica de uma imunodeficiência primária(1).

A presença de artrite nas imunodeficiências humorais primárias é raramente descrita na literatura e pode ser a primeira e única manifestação clínica até que o diagnóstico seja estabelecido(2). A freqüência de deficiência seletiva de IgA (Def IgA) em pacientes com artrite crônica [artrite idiopática juvenil (AIJ) símile] é descrita entre 2% e 4%(3-5) dos casos, e o percentual da prevalência dessa imunodeficiência em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico juvenil (LESJ) é de 1% a 4%(3,6,7). A associação de doenças reumatológicas com hipogamaglobulinemia também é descrita com freqüências que variam de 7% a 42%(3). Por outro lado, pacientes com imunodeficiência comum variável (IDCV) ou Def IgA apresentam maior prevalência de AIJ, LESJ e síndrome de Sjögren(8).

A raridade de estudos de prevalência dessa associação, particularmente na população brasileira de AIJ e LESJ, e a expressiva casuística da Unidade de Reumatologia Pediá–trica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (ICr- HC-FMUSP) estimularam a realização desta pesquisa.

Portanto, os objetivos do presente estudo foram descrever os pacientes que apresentaram artrite como manifestação inicial de imunodeficiências humorais primárias e avaliar a prevalência de Def IgA na população de pacientes com AIJ e LESJ, acompanhados nesse serviço terciário de reumatologia pediátrica.

PACIENTES E MÉTODOS

O estudo realizado foi transversal. Durante o período de 23 anos (janeiro de 1983 a dezembro de 2006), 4.876 pacientes foram acompanhados na Unidade de Reumatologia do ICr-HC-FMUSP e foram avaliados aqueles que apresentaram artrite como primeira manifestação de imunodeficiências humorais primárias. A avaliação retrospectiva dos prontuários médicos incluiu o registro de dados demográficos (sexo, idade de início da doença reumatológica e idade de diagnóstico da imunodeficiência primária), história de doença auto-imune ou imunodeficiências em parentes de primeiro e segundo graus, história de infecções de repetição, descrição detalhada da doença articular (padrão de início, duração dos sintomas, número de articulações comprometidas, distribuição do envolvimento articular, localização e seqüência de acometimento das articulações afetadas) e presença de manifestações extra-articulares.

As imunodeficiências humorais avaliadas no presente estudo foram: Def IgA (idade acima de 4 anos, níveis séricos de IgA <>(9).

A avaliação laboratorial de auto-imunidade incluiu dosagem de fator reumatóide e de auto-anticorpos: fator antinúcleo (FAN), anti-DNA nativo, anti-Sm, anti-Ro/SSA, anti-La/SSB, anticardiolipina (isotipos IgG e IgM) e anticoagulante lúpico. Outros auto-anticorpos, avaliados nos pacientes com LESJ para pesquisa de auto-imunidade órgão-específica, foram: tireóide (antiperoxidase, antitireoglobulina e anti-receptor de TSH – TRAB), fígado (antimitocondrial, antimicrossomal, antimúsculo liso e anticitosol hepático), trato gastrintestinal (anticélula parietal, antigliadina IgG e anti-endomísio) e diabetes melito (anti-insulina e antidescarboxilase do ácido glutâmico – anti-GAD). Radiografias das articulações acometidas foram também realizadas para pesquisa de osteopenia periarticular, erosões, cistos ósseos e anquilose.

O diagnóstico de LESJ foi estabelecido de acordo com os critérios de classificação do American College of Rheumatology (ACR), com início da doença antes dos 18 anos de idade(10). Os critérios do International League of Associations for Rheumatology (ILAR) foram utilizados para o diagnóstico de AIJ(11). O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Pesquisa e Ética do HC-FMUSP.

RESULTADOS

Ao longo de 23 anos, 4.876 pacientes foram acompanhados na Unidade de Reumatologia do ICr-HC-FMUSP. Destes, 620 pacientes tiveram diagnóstico de AIJ e 244, de LESJ.

Dos 620 pacientes que tiveram diagnóstico de AIJ, os prontuários de 253 foram avaliados e 70 (11%) tinham dosagens séricas de imunoglobulinas (IgG, IgA e IgM). A deficiência de IgA foi encontrada em 6/70 (8,5%) dos pacientes com AIJ (AIJ símile). Dos 244 pacientes com LESJ avaliados neste período, 45 (18%) realizaram dosagens séricas de imunoglobulinas, e deficiência de IgA foi encontrada em 3/45 (6,6%) dos pacientes com LESJ.

O diagnóstico de imunodeficiência humoral foi realizado retrospectivamente em 11 pacientes (0,2%), incluindo os seis pacientes com AIJ símile e os três com LESJ. A tabela 1 inclui características demográficas, tipo de imunodeficiência, presença de infecções de repetição e doença reumática. A tabela 2 compreende antecedentes familiares, manifestações extra-articulares e exames complementares desses 11 pacientes.

Dos 11 pacientes com diagnóstico de imunodeficiência humoral (0,2%), Def IgA foi encontrada em oito, imunodeficiência comum variável em dois e deficiência de subclasses de IgG em um. A proporção entre sexo feminino e masculino foi de 7:4. A média da idade de início dos sintomas articulares e a média do diagnóstico da imunodeficiência foi de 6,2 anos (variou de um a 15) e 8,2 anos (variou de três a 19), respectivamente.

Cinco dos 11 pacientes descritos apresentaram artrite aguda com envolvimento de grandes articulações do esqueleto apendicular. A presença de oligoartrite aguda ocorreu nos três pacientes com LESJ (casos 6, 8 e 9), poliartrite aguda recorrente em um (caso 10) e oligoartrite aguda recorrente em outro (caso 2).

Seis pacientes apresentaram artrite crônica não-erosiva (AIJ símile), e um deles apresentava limitações articulares em coluna cervical, punhos, metacarpofalangeanas, joelho direito e tornozelos. Comprometimento oligoarticular foi observado em um paciente, e poliartrite foi observada em cinco. Estudo radiológico foi realizado em todos os indivíduos e nenhum deles apresentou erosões, cistos ósseos ou anquilose.

Um aspecto relevante deste estudo foi evidenciado em duas pacientes com LESJ que apresentaram deficiência seletiva de IgA associada a diabetes melito tipo I de difícil controle e necessidade de bomba de infusão contínua de insulina. Uma delas apresentou pneumonias de repetição associadas com uma doença auto-imune sistêmica com tireoidite, diarréia crônica, doença pulmonar obstrutiva crônica, vasculite de sistema nervoso central, com presença de múltiplos auto-anticorpos, tais como: antiperoxidase, antiinsulina e antigliadina IgG. Outra teve glomerulonefrite membranoproliferativa, tireoidite, com presença de múltiplos auto-anticorpos: TRAB, anti-GAD e antiinsulina.

DISCUSSÃO

O presente estudo evidencia baixa prevalência de imunodeficiência humoral primária em associação com artrite na população de pacientes atendidos em um serviço terciário de reumatologia pediátrica (0,2%).

A Def IgA é a imunodeficiência primária de maior prevalência(6,12,13). Neste estudo, oito dos 11 pacientes descritos apresentaram essa imunodeficiência humoral. Apesar de a etiologia da Def IgA ainda ser desconhecida, auto-anticorpos anti-IgA podem exercer um papel em sua indução(12,14). Petty et al.(5) evidenciaram uma freqüência de anticorpos anti-IgA entre 19% e 100% dos pacientes com essa imunodeficiência. Além disso, esses autores mostraram maior prevalência desses auto-anticorpos em pacientes com associação de Def IgA com AIJ ou LES (77% e 100%, respectivamente). Dessa forma, a Def IgA com anticorpos anti-IgA presentes poderia ser considerada um distúrbio auto-imune(14). Outro aspecto relevante é que a Def IgA secundária a drogas como antiinflamatórios não-hormonais, ouro parenteral e D-penicilamina é freqüentemente descrita(15-21). Nove dos onze pacientes avaliados neste estudo desenvolveram imunodeficiências previamente ao uso de drogas anti-reumáticas. O paciente 2 fez uso apenas intermitente e esporádico de antiinflamatórios não-hormonais durante os episódios de artrite aguda. O paciente 9 fez uso de prednisona, ciclofosfamida e micofenolato mofetil dos 15 aos 19 anos, porém seus níveis séricos de IgA nunca haviam sido realizados antes, o que impossibilita relacionar a Def IgA à terapêutica da doença auto-imune.

As doenças reumatológicas mais freqüentemente associadas com Def IgA são artrite reumatóide, AIJ e LESJ. São descritas mais raramente associações dessa imunodeficiência com esclerodermia, dermatopolimiosite e doença mista do tecido conectivo(2). No presente estudo, dos oito pacientes com Def IgA avaliados, quatro apresentaram artrite crônica e três apresentaram diagnóstico de LESJ. Outra paciente apresentou oligoartrite aguda e úlceras orais recorrentes, mas não preencheu critérios diagnósticos para LESJ.

De acordo com a literatura, o quadro clínico, a proporção entre os sexos e a idade de início da artrite não diferem em pacientes com Def IgA isolada ou associada à AIJ. A distribuição dos tipos de início da AIJ associada à Def IgA é: oligoarticular em 64%, poliarticular em 32% e sistêmica em 4% dos casos(22-24). Neste estudo, três pacientes com artrite AIJ símile apresentaram início e evolução poliarticular e um paciente apresentou início e evolução sistêmicos. Na maioria dos pacientes, o curso da doença é leve com poucas limitações funcionais e sem lesões radiográficas, conforme evidenciado nos pacientes deste trabalho.

Um dos pacientes com Def IgA apresentou, além de artrite crônica, eritema nodoso recorrente como primeira manifestação da imunodeficiência primária. Essa associação tem sido raramente descrita na literatura. Tremeau-Martinage et al.(25) descreveram um caso de um paciente de sete anos de idade com Def IgA, paniculite auto-imune e presença de múltiplos auto-anticorpos.

Doença auto-imune ocorre em 20% a 30% de pacientes com IDCV e a prevalência de artrite associada a essa imunodeficiência varia de 20% a 30%(2,26,27). Em uma série de 103 pacientes com IDCV, três pacientes apresentaram artrite crônica semelhante à AIJ(26). Pipitone et al.(8) relataram maior prevalência de AIJ, LES, síndrome de Sjögren e cirrose biliar primária em pacientes com IDCV. No presente estudo, os dois pacientes com IDCV apresentaram artrite crônica.

Em relação à deficiência de subclasses de IgG, há poucos relatos de associação com doenças auto-imunes. Aucouturier et al.(28) descreveram uma associação de deficiên-cia de IgG2 com vasculite e citopenias em uma grande série de 450 pacientes portadores dessa imunodeficiência humoral. O único paciente desse estudo com deficiência de IgG2 apresentou poliartrite aguda intermitente de caráter inespecífico, associada com entesite e diarréia crônica. O diagnóstico de doença inflamatória intestinal foi descartado pela colonoscopia e pela biópsia dirigida.

Embora as infecções sejam as manifestações mais comuns e mais precoces das imunodeficiências primárias, doen-ças auto-imunes também são freqüentes nesses pacientes. A associação entre imunodeficiências humorais primárias e doenças reumatológicas pode ser explicada por algumas hipóteses. Defeitos do sistema imune podem resultar em dificuldade de depuração de agentes microbianos, resultando ativação imunológica crônica e sintomas auto-imunes. Alelos de HLA que predispõem tanto para a auto-imunidade quanto para a imunodeficiência, como o HLA-B8, DR3 e Cw6, comuns à doença celíaca e Def IgA, também podem estar relacionados com a ocorrência dessa associação (29,30). Além disso, as manifestações reumatológicas dos pacientes com imunodeficiências primárias, em sua maioria, são inespecíficas e não são preenchidos os critérios diagnósticos para AIJ ou LESJ. Essas manifestações poderiam ser consideradas, portanto, uma conseqüência da imunodeficiência primária. Por sua vez, nos pacientes com doença auto-imune que preencheram critérios de classificação para diagnósticos de AIJ ou LESJ, é muito difícil determinar se as manifestações articulares estão relacionadas à própria colagenose ou à imunodeficiência humoral. Nesses casos, existe uma tendência a se considerar essa imunodeficiência um evento paralelo ao quadro articular. Entretanto, em ambos os casos (de doença auto-imune específica ou AIJ/LESJ símile), a freqüência de imunodeficiência humoral é maior do que na população geral. Dessa forma, a associação entre imunodeficiência e auto-imunidade em um mesmo paciente poderia representar um espectro clínico causado por uma única anormalidade imunológica. A maior compreensão das bases moleculares das imunodeficiências e de suas conseqüências para o sistema imune poderá contribuir para um melhor entendimento da fisiopatologia das doenças auto-imunes.

A presença de infecções de repetição e história familiar de imunodeficiência e doença auto-imune reforça a necessidade de pesquisa rotineira das imunoglobulinas séricas nos pacientes com artrite. Além disto, esses exames devem ser preferencialmente solicitados nos pacientes com LESJ e AIJ, particularmente com infecções de repetição e história familiar de doença auto-imune.

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