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Postado por JOSÉ quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Revista Brasileira de Reumatologia

versão impressa ISSN 0482-5004

Rev. Bras. Reumatol. vol.49 no.3 São Paulo maio/jun. 2009

doi: 10.1590/S0482-50042009000300011

RELATO DE CASO

Hemofilia A adquirida associada à artrite reumatoide

Marlene FreireI; Reginaldo Botelho TeodoroII; Dulcinéia Aparecida Nogu

RESUMO

O aparecimento do anticorpo contra fator VIII é um fenômeno bem estabelecido na hemofilia A, ocorrendo em 5 a 15% dos pacientes hemofílicos dos Estados Unidos, Inglaterra, Suécia e França. Nos pacientes não-hemofílicos o seu aparecimento é raro, podendo ocorrer em indivíduos saudáveis, principalmente idosos e mulheres no puerpério, pacientes com neoplasia maligna ou doenças autoimunes, como lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide e síndrome de Sjögren. Descrevemos o caso de uma paciente de 64 anos de idade, portadora de artrite reumatoide soropositiva há 23 anos, que há 10 dias desenvolveu equimoses e hematomas progressivos cuja investigação foi compatível com a presença de anticorpo contra fator VIII. Foi instituída terapia com metilprednisolona, ciclofosfamida endovenosa, imunoglobulina e reposição de complexo protrombínico, com remissão do quadro hemorrágico e negativação do anticorpo contra o fator VIII. Concluímos com esse caso que, apesar de ser rara, a presença de inibidores adquiridos do fator VIII deve ser pesquisada quando pacientes portadores de doença autoimune desenvolvem manifestações hemorrágicas associadas ao prolongamento do TTPA com TAP e contagem plaquetária normais.

Palavras-chave: artrite reumatoide, inibidor do fator VIII, hemofilia A adquirida.


INTRODUÇÃO

A hemofilia A adquirida é uma alteração rara da coagulação sanguínea caracterizada pelo aparecimento de anticorpos circulantes contra a atividade pró-coagulante do fator VIII.1 Essa condição pode ocorrer em associação com doenças autoimunes, como artrite reumatoide (AR),1-8 lúpus eritematoso sistêmico (LES)2,3 e síndrome de Sjögren.9 A hemofilia A adquirida também tem sido relatada em idosos sadios,7,8 mulheres no pós-parto8 e pacientes com neoplasia maligna,2 além de ser relacionada ao uso de fármacos como a penicilina.3,8

Várias terapias incluindo corticosteroide, ciclofosfamida, ciclosporina ou vincristina têm sido usadas para reduzir ou eliminar os inibidores do fator VIII. Tratamentos com altas doses de imunoglobulina, interferon e plasmaférese têm sido relatados, porém atualmente não se tem definida nenhuma terapia "padrão ouro".4,5,10 O esquema de tratamento mais utilizado quando da associação com doenças autoimunes consiste na combinação da metilprednisolona e ciclofosfamida.4,5,7,10,11 Nos últimos anos, tem sido citado que o rituximabe poderá ser um valioso agente no tratamento da hemofilia adquirida.11

Descrevemos o caso de uma paciente com AR que apresentou quadro hemorrágico grave com diagnóstico de hemofilia A adquirida.

RELATO DE CASO

A paciente tem 64 anos de idade, é parda, viúva, natural de Ibiá ( mg) e procedente de Frutal ( mg). Tem história de equimoses e hematomas progressivos por todo corpo há 10 dias. Foi admitida pela primeira vez no Hospital Escola da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) em abril de 2005. Apresentava diagnóstico de AR há 23 anos e fazia uso de prednisona 5 mg/dia desde o início da doença, em acompanhamento facultativo. No exame físico, encontramos equimoses e hematomas extensos em membros inferiores (Figuras 1 e 2), abdome e vulva, além das mãos com desvio ulnar dos dedos e espessamento sinovial nas articulações metacarpofalangianas.

Os exames laboratoriais mostraram hemácias de 2.370.000/mm3, hemoglobina de 7,4 g/dL, hematócrito de 22,4%, plaquetas de 340.000/mm3, proteína C reativa de 23,3 mg/dL, ±1-glicoproteína ácida de 1,0 g/dL, velocidade de hemossedimentação de 50 mm na primeira hora, tempo de ativação de protrombina (TAP) com 78% de atividade e tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA) com relação paciente-teste de 3,45 (normal de 0,9 a 1,25). A dosagem de fator reumatoide foi de 51,6 UI/mL (valor de referência < intensidade =" nível">

O tratamento durante a internação consistiu na realização via endovenosa de três ciclos de metilprednisolona 700 mg/dia, dois ciclos de 25g de imunoglobulina, ciclofosfamida 500 mg com intervalo de 21 dias entre eles e reposição de complexo protrombínico (Fator VIII 1250 UI de 12/12 horas por 15 dias).

A paciente evoluiu com melhora importante do quadro clínico, normalização do TTPA e negativação do anticorpo contra o fator VIII em um mês de tratamento. Recebeu alta em uso de prednisona 100 mg/dia e foi submetida a mais três ciclos mensais de ciclofosfamida 500 mg via endovenosa no Ambulatório de Reumatologia. Em agosto de 2005, foi suspensa a ciclofosfamida, permanecendo a paciente em acompanhamento no ambulatório com evolução favorável.

DISCUSSÃO

O relato do caso mostra uma paciente com doença autoimune que desenvolveu hemofilia adquirida e foi tratada com sucesso com uma combinação de metilprednisolona, imunoglobulina, reposição de fator VIII/complexo protrombínico e ciclofosfamida endovenosa.

O diagnóstico diferencial de equimoses e/ou hematomas cursando com alargamento do TTPA, a redução da dosagem do fator VIII e a presença do inibidor de fator VIII caracterizando a hemofilia adquirida inclui neoplasias ou doenças autoimunes como AR, LES e síndrome de Sjögren, uso de drogas como penicilina, mulheres no pós-parto e idosos sadios.

A associação de AR com o anticorpo antifator VIII circulante é rara. Os inibidores do fator VIII em pacientes não-hemofílicos são geralmente associados a sangramento severo, que pode levar à morte em mais de 20% dos casos.1,4 O principal objetivo do tratamento da hemofilia adquirida, além de controlar as hemorragias, é erradicar o anticorpo contra o fator VIII.10

O tipo, a extensão e a gravidade da hemorragia em pacientes com autoanticorpos (hemofilia adquirida) diferem da observada em pacientes com hemofilia A e que desenvolvem inibidores. Nesses pacientes, os sangramentos se iniciam na infância e ocorrem nas articulações, nos músculos e em tecidos moles, sendo que a presença de inibidores do fator VIII não aumenta a frequência de episódios hemorrágicos, mas dificulta o controle de tais eventos. Já os pacientes com hemofilia adquirida são habitualmente adultos com hemorragias súbitas, mais graves na pele, em tecido subcutâneo e nos músculos; as hemartroses são menos comuns.10,11

O fato de a produção de anticorpo antifator VIII não estar associada à atividade da doença, como observado no caso descrito, sugere a importância de monitorar a coagulação sanguínea nos pacientes em remissão clínica e com manifestações hemorrágicas. O diagnóstico precoce é de suma importância, pois, apesar de rara, essa condição é muito grave e com alta mortalidade.3,4,6

Concluímos com a apresentação desse caso que a pesquisa de inibidores adquiridos contra o fator VIII deve ser realizada em pacientes com doença autoimune que desenvolvem manifestações hemorrágicas na vigência de TTPA prolongado com TAP e contagem plaquetária normais.

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