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Postado por JOSÉ quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Revista Brasileira de Reumatologia
versão impressa ISSN 0482-5004
Rev. Bras. Reumatol. v.47 n.5 São Paulo set./out. 2007

doi: 10.1590/S0482-50042007000500016
RELATO DE CASO CASE REPORT



Poliartrite e nódulos subcutâneos como primeira manifestação de carcinoma de pâncreas

RESUMO

A associação de poliartrite, nódulos subcutâneos e carcinoma de pâncreas é uma condição rara e pouco diagnosticada. O presente trabalho tem o objetivo de relatar um caso de carcinoma pancreático associado a poliartrite e nódulos subcutâneos, semelhantes ao eritema nodoso, cujo exame histopatológico evidenciou tratar-se de paniculite com necrose gordurosa. Os autores pretendem, por meio deste relato, lembrar essa associação incomum que se torna de grande importância clínica, considerando que artrite e nódulos subcutâneos podem anteceder as manifestações clínicas de neoplasia pancreáticaINTRODUÇÃO

A associação de necrose gordurosa e doença pancreática foi primeiramente descrita por Hansemann, em 1882, e Chiari, em 1883. Em 1908, Berner relatou síndrome similar, porém associada com malignidade pancreática(1-5). Em 1914, Jenckel relatou o componente articular como parte dessa síndrome. Artrite, paniculite e doença pancreática têm sido encontradas formando uma rara tríade, ocorrendo em menos de 1% dos pacientes com pancreatite aguda ou carcinoma pancreático(1,6).

Poliartrite pode ocorrer como manifestação de vários processos patológicos, podendo ser encontrada em associação à doença pancreática(1), porém raramente o quadro de artrite antecede o diagnóstico de uma doença pancreática silenciosa(2,3).

Necrose gordurosa subcutânea tem sua origem ainda pouco esclarecida. Sugere-se que possa estar relacionada a um processo de degradação do tecido adiposo pela liberação de enzimas pancreáticas. Sua forma mais comum de apresentação clínica é como nódulos eritematosos, ocorrendo em 2% a 3% de todos os pacientes com doença pancreática(7).

Os autores relatam um caso de neoplasia pancreática, em que artrite e lesões eritematosas nodulares precederam o diagnóstico de doença pancreática.



RELATO DE CASO

Paciente do sexo masculino, branco, 63 anos, aposentado, natural de Recife, residente em Muriaé (MG), diabético, tabagista e com história de etilismo, foi internado com quadro de artrite em articulações de punhos, joelhos, primeira metatarsofalangiana e tarso bilateralmente. Sentia dor de grande intensidade, eritema e calor havia aproximadamente 3 semanas. Relatava febre em torno de 38°C, com freqüência diária, e lesões nodulares, eritematosas e dolorosas (2 a 3 cm de diâmetro) localizadas principalmente em membros inferiores, mas que também acometiam membros superiores, semelhantes ao eritema nodoso.

Não havia queixa em relação aos sistemas respiratório, digestivo nem urinário. Os exames complementares revelavam discreta anemia (hemoglobina= 11,1 g/dl) e leucocitose (leucometria global = 25.200 céls./mm3), sem desvio à esquerda, e elevação significativa da velocidade de sedimentação das hemácias (108 mm na primeira hora) e proteína C reativa 164 mg/l (normal até 6 mg/l).

Aventou-se a hipótese de artrite infecciosa ou quadro articular reacional. Artrocentese não obteve líquido sinovial para culturas e demais exames de rotina. Iniciou-se tratamento com ceftriaxona, oxacilina e analgésicos. Após 10 dias de tratamento parenteral, não havia nenhum sinal de melhora, continuando com poliartrite dolorosa e os nódulos subcutâneos eritematosos dolorosos. Optou-se por iniciar terapia com glicocorticóide (prednisona 40 mg/dia), que também não alterou a evolução do quadro.

Biópsia de nódulo de membro inferior revelou paniculite mista do tipo necrose gordurosa.

Baseando-se nesse resultado, sugeriu-se pesquisa de doença pancreática como causa de nódulo subcutâneo e presença de necrose gordurosa. Não havia sintomas abdominais e a ultra-sonografia abdominal total mostrou-se normal. A dosagem das enzimas pancreáticas mostrou os seguintes resultados: amilase de 2.847U/l (valor normal: 25 a 125 U/l) e lipase de 280 U/l (valor normal: 2 a 18 U/l). Prosseguindo a investigação, realizou-se tomografia computadorizada de abdome, que evidenciou calcificações e a presença de lesão de aspecto tumoral, de 3 cm, em topografia de cabeça de pâncreas. O quadro articular ainda não havia mostrado nenhuma melhora, e solicitou-se acompanhamento da gastroenterologia.

Posteriormente, realizou-se tentativa de biópsia de pâncreas via endoscópica, sem sucesso. O paciente evoluiu rapidamente, com queda significativa do estado geral, não havendo possibilidade de cirurgia, nem de quimioterapia, vindo a falecer em 2 meses.



DISCUSSÃO

Doenças pancreáticas (inflamatórias ou neoplásicas) têm sido associadas a uma entidade bem estabelecida, que inclui: necrose gordurosa subcutânea (paniculite) e artropatia(8). O reconhecimento dessa entidade é relevante para o diagnóstico e terapêutica precoces, sobretudo em casos de doença pancreática oculta (como ocorreu nesse caso)(9), visto que lesões de pele e manifestações articulares podem preceder sintomas abdominais da doença pancreática. Pancreatite, freqüentemente com pseudocistos, e carcinoma de células acinares são as principais doenças pancreáticas associadas, mas o espectro é ainda maior, incluindo cálculo e trauma pancreático, pancreatite isquêmica, fístula arteriovenosa do ducto pancreático, entre outras(8,10,11).

O mecanismo envolvido na patogênese da necrose gordurosa subcutânea e periarticular ainda é pouco conhecido. Sugere-se que esteja relacionado à lipase pancreática oriunda da hipersecreção de células acinares tumorais, ou resultante de obstrução ductal em razão de pancreatite edematosa concomitante(8). Uma vez na circulação sistêmica, ocorre autodigestão de gordura subcutânea periarticular(1,5) e de outros sítios, onde, posteriormente, a lipase vem a ser ativada(3,12,13), desencadeando reação inflamatória.

A paniculite é uma lesão altamente específica para doença pancreática, particularmente carcinoma acinar de pâncreas, e denota pior prognóstico(9). Clinicamente, manifesta-se principalmente como nódulos dolorosos, medindo cerca de 1 a 2 cm, eritematosos, podendo surgir isolados ou difusos(12). Podem ocorrer em qualquer local do corpo, mas freqüentemente acometem membros inferiores(3,4,9), sobretudo em área pré-tibial(6,11) e parte inferior dos joelhos(14) . No caso relatado, observou-se essa preferência de localização dos nódulos. Observa-se, em outros relatos de casos, que a paniculite geralmente precede o diagnóstico de 1 a 7 meses, podendo ser um anúncio de doença metastática(9), regredindo em 2 a 8 semanas, transformando-se em escaras pigmentadas. Na sua forma grave, podem-se tornar flutuantes ou ulcerativas(9,11). O diagnóstico diferencial de tais nódulos inclui: doença de Weber-Christian, eritema nodoso, paniculite lúpica, vasculites e reação a drogas(4,6,7). A histologia é diagnóstica, mostrando uma forma única de necrose gordurosa (paniculite primária)(8). Os achados patológicos em lesões agudas incluem a presença de células anucleadas, com áreas de necrose gordurosa cercadas por células inflamatórias(1,9,13). Tais características não estão presentes em outras causas de paniculite(6,12) .

Ainda em relação às manifestações clínicas, podem-se encontrar febre, eosinofilia, dor abdominal, náuseas e vômitos. O paciente em questão não apresentou sinais nem sintomas abdominais, o que, de certa forma, dificultou e retardou o diagnóstico da doença pancreática. Outros casos na literatura atentam para escassez de sintomas abdominais. História de etilismo crônico também foi fator comum à maioria dos relatos.

Embora não se tenha pesquisado no paciente relatado, o acometimento ósseo pode ocorrer, relacionando-se patologicamente à extensão da necrose gordurosa intramedular e à destruição trabecular óssea, cujo aspecto radiológico é citado como múltiplas lesões pequenas em região cortical de ossos longos, ocorrendo, geralmente, de modo indolor(1,6,10,14,15) .

A elevação sérica de enzimas pancreáticas verificada no relato e reportada em muitos casos reforça a patogênese da necrose gordurosa(1,8,11,12) . Estudos comparativos sugerem que tais enzimas causariam hidrólise no tecido adiposo periarticular e na medula óssea, liberando ácidos gordurosos, que, por sua vez, atuariam desencadeando o processo inflamatório, sobretudo nas manifestações extrapancreáticas(8,10,11,12,16).

A poliartrite é uma rara complicação de pancreatite(4) e carcinoma pancreático(17). O envolvimento articular é variável, podendo ser mono ou poliarticular, manifestando-se concomitante ou separadamente dos nódulos subcutâneos, podendo preceder a dor abdominal ou qualquer outra evidência de doença pancreática(1). O acometimento articular pode mimetizar a gota, febre reumática, sarcoidose, artrite infecciosa ou doenças do tecido conjuntivo(1,3). A pesquisa diagnóstica deve, sempre que possível, incluir exame do líquido sinovial das articulações comprometidas, como também biópsia do nódulo. Sugere-se também a determinação de enzimas pancreáticas, ultra-sonografia de abdome total, principalmente em pacientes alcoólatras, com conhecida doença pancreática(1,18).

A terapia que emprega antiinflamatórios não esteroidais, glicocorticóides e agentes imunossupressores se mostrou ineficaz para reverter o processo inflamatório, não interferindo na evolução dos nódulos subcutâneos, nem no processo articular(1,8,14). No paciente relatado, realizou-se terapia com antiinflamatórios e glicocorticóides, após tratamento inicial com antibióticos, também sem melhora do processo inflamatório ou da dor.

Portanto, deve-se estar atento para a possibilidade diagnóstica de doença maligna pancreática, em vigência de paniculite e artrite, mesmo sem queixas abdominais.

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