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Postado por JOSÉ quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Revista Brasileira de Reumatologia
versão impressa ISSN 0482-5004
Rev. Bras. Reumatol. v.47 n.4 São Paulo jul./ago. 2007

doi: 10.1590/S0482-50042007000400013
RELATO DE CASO CASE REPORT



Síndrome CINCA: um diagnóstico diferencial da artrite idiopática juvenil

RESUMO

A síndrome CINCA (crônico-infantil-neurológica-cutâneaarticular) é uma enfermidade inflamatória multissistêmica rara, de início no período neonatal e caracterizada por febre, exantema cutâneo, envolvimento articular e do sistema nervoso central. É também conhecida pela literatura médica norte-americana como NOMID (doença multissistêmica inflamatória de início neonatal). Relatamos o caso de uma criança de 3 anos de idade admitida em nosso serviço com história de febre e exantema cutâneo desde o período neonatal. Apresentou crises convulsivas no sexto mês de vida e artrite simétrica de joelhos desde o nono mês. Na admissão, mostrava-se toxemiada, pálida, com um exantema maculopapular generalizado e artrite de joelhos e tornozelos. Apresentava ainda retardo de crescimento e desenvolvimento. Achados laboratoriais incluíram anemia, leucocitose, trombocitose, níveis elevados de proteína C reativa e meningite asséptica no exame do liquor. Os outros exames foram negativos. Os achados radiográficos dos joelhos, quadris e tornozelos foram anormais. A criança recebeu tratamento com antiinflamatório não hormonal, corticosteróide e metotrexato, com melhora apenas da dor e da febre. A etiologia da síndrome CINCA permanece desconhecida e nenhum tratamento tem se mostrado eficaz. Essa doença deve ser distinguida da forma sistêmica da artrite idiopática juvenil (AIJ), o principal diagnóstico diferencial.


INTRODUÇÃO

A síndrome CINCA (crônico-infantil-neurológica-cutânea-articular) foi descrita na Europa, em 1981, por Prieur-Griscelli, como uma enfermidade inflamatória multissistêmica de início na infância(1-6). É também conhecida pelos norte-americanos como NOMID (neonatal onset multisystem inflammatory disease)(7-10). Inicia-se no período neonatal, caracterizada por febre, meningite crônica, uveíte, perda neurossensorial da audição e artropatia deformante(3,7). São poucos os casos relatados mundialmente e no Brasil até o momento(11). Essa doença é rara e confundida com a forma sistêmica da artrite idiopática juvenil (AIJ), sendo comum o atraso no diagnóstico(9). Apesar de não existirem ainda critérios bem definidos e esquema terapêutico padronizado, o diagnóstico precoce é importante para diminuir as seqüelas da doença.

Relatamos o caso de uma criança que apresentava exantema generalizado desde o primeiro mês de vida, febre diária desde os 8 meses e artropatia desde os 9 meses. O diagnóstico foi feito aos 3 anos de idade. O objetivo deste relato é sugerir o diagnóstico da síndrome CINCA quando as manifestações clínicas forem analisadas em um contexto clínico pertinente.



RELATO DE CASO

DNS, sexo feminino, branca, nascida de parto normal, a termo, com peso de 3.150 g e estatura de 48 cm. Desde 1 mês de vida, apresentava exantema em todo o corpo e febre diária a partir do 8º mês de vida. Aos 9 e 14 meses foram referidas duas crises convulsivas febris, tônico-clônicas generalizadas, controladas completamente com o uso de fenobarbital, via oral, 4 mg/kg/dia. Aos 9 meses, teve início artrite simétrica de joelhos, dolorosa à palpação e à movimentação, evoluindo para poliartrite em mãos, punhos, cotovelos e tornozelos.

O primeiro exame neurológico foi realizado no 12º mês de vida, quando se observou atraso do desenvolvimento neuropsicomotor, com incapacidade para deambular, hipotonia e postura de batráquio, sentando-se apenas com apoio. Aos 2 anos de idade foi encaminhada ao Ambulatório de Reumatologia Pediátrica do Hospital Universitário da UFMS com diagnóstico de síndrome genética a esclarecer e retardo pôndero-estatural (percentil de peso e altura menor que 2,5). O diagnóstico inicial na admissão foi de artrite idiopática juvenil. Ao exame físico, observaram-se irritabilidade e exantema generalizado e pruriginoso que se exarcebava durante a febre (dois a três picos diários) (Figura 1). Ao exame osteoarticular, apresentava aumento de volume em joelhos, tornozelos, cotovelos, punhos e articulações interfalangeanas das mãos, com limitação à flexão e à extensão (Figura 2). Os exames laboratoriais mostraram anemia, leucocitose, plaquetose, provas inflamatórias elevadas (PCR = 87,2 mg/l, VHS = 81 mm/h, mucoproteínas = 11,5 mg/dl, alfa 1 glicoproteína ácida = 273,6 mg/dl). A dosagem de fosfatase alcalina (726) e de IgE (744,1) estava elevada. A dosagem de outras imunoglobulinas (IgG, IgM, IgA, IgD), cálcio e fósforo sérico foi normal. O fator antinúcleo (FAN), fator reumatóide (FR), enzimas musculares, provas de funções renal e hepática, dosagem de complemento, líquido cerebroespinal e cariótipo foram normais. As sorologias para doença crônica intra-útero foram negativas, exceto por dosagem elevada de IgG para citomegalovírus. O eletroencefalograma, a tomografia computadorizada (TC) e a ressonância magnética (RM) de crânio não evidenciaram alterações.















Nas radiografias dos ossos longos, observaram-se marcada desmineralização óssea, periostite diafisária, encurtamento dos membros inferiores e joelhos em flexão, metáfises, cartilagens de conjugação e epífises alargadas em copa, fragmentação principalmente epifisária nas articulações dos joelhos, tornozelos, calcâneos, punhos e cotovelos, além de hipertrofia e fragmentação da patela bilateralmente (Figura 3).








Realizou-se pesquisa genética para síndrome CINCA para verificar mutação no gene CIAS1 (éxon 3) pelo método de reação em cadeia da polimerase (PCR), tendo sido confirmada a mutação A439P no gene CIAS1. Estabeleceu-se o diagnóstico de síndrome CINCA aos 3 anos de idade e iniciou-se tratamento com corticóide via oral (prednisona 1 mg/kg/dia) e antiinflamatório não hormonal (naproxeno 15 mg/kg/dia) com melhora apenas da febre, persistindo os demais sintomas. Seis meses após, associou-se metotrexato na dose de 0,5 mg/kg/semana, e permanece até o momento com essas medicações. Apresenta melhora das crises de dor, febre e exantema, embora com as limitações da seqüela articular.

A paciente está em uso de órteses em punhos e joelhos e em acompanhamento multidisciplinar, realizando sessões de hidroterapia, fisioterapia motora, fonoaudiologia e terapia ocupacional. Quanto ao exame neurológico, mantém atraso na linguagem, com frases gramaticais e dislalia de troca e compreensão de ordens simples. Senta com apoio, não muda de decúbito, não engatinha nem apresenta controle de esfíncteres. Os reflexos estão presentes e normais, sem comprometimento de pares cranianos. O exame oftalmológico e a audiometria realizados com 3 anos e 6 meses de idade foram normais.



DISCUSSÃO

A síndrome CINCA é uma doença rara, crônica, que acomete crianças desde os primeiros meses de vida. Como essa doença não está associada a elevações de títulos de auto-anticorpos nem antígenos específicos, não é classificada como uma doença auto-imune clássica, mas auto-inflamatória(6-7). O sinal clínico mais precoce da doença, que pode estar presente ao nascimento em 80% dos casos, é o exantema, do tipo urticariforme, maculopapular, evanescente, de formas irregulares que se exarceba durante a febre e a exposição solar. A febre diária intermitente, dificilmente superior a 39ºC, é uma das primeiras manifestações da doença(3,12).

O envolvimento articular simétrico da síndrome CINCA pode variar de edema discreto à artropatia destrutiva(15). As articulações mais acometidas são os joelhos (em 100% dos pacientes), cotovelos e tornozelos, como ocorreu no caso em estudo(3,10,12). Pode afetar ainda articulações das mãos, punhos e pés, com contraturas fibrotendíneas; raramente o esqueleto axial, os ombros e os quadris estão envolvidos(2,13). Em 50% dos pacientes, a artrite inicia-se no primeiro ano de vida, sendo o prognóstico pior com rápida progressão e incapacidade funcional. Nos 50% restantes, as alterações articulares são moderadas e não destrutivas, iniciando-se após os 2 anos de idade. Entesopatia associada à tenossinovite em membros inferiores também foi descrita em um caso(6).

O acometimento do sistema nervoso central (SNC) é variável tanto na intensidade quanto na forma, sendo muito frequentes meningite crônica asséptica, cefaléia, macrocrania, calcificações intracranianas, espasticidade, convulsões, diminuição cognitiva, hipotonia e atraso do desenvolvimento neuropsicomotor (2,3,11,13).

Outras manifestações descritas são retardo de crescimento, nariz em sela, dedos grossos e curtos com baqueteamento digital, hepatosplenomegalia, linfonodomegalia, proteinúria, nefrite mesangial e disfunção hepática(2,8,11,13,14). Envolvimento de órgãos sensoriais, incluindo manifestações oculares e surdez progressiva neurossensorial, foi documentado em 22% dos pacientes(13). Em estudo multicêntrico internacional sobre as manifestações oculares da síndrome CINCA, alterações do disco óptico foram relatadas em 83% dos pacientes, caracterizadas por edema, pseudopapiledema e atrofia do nervo óptico; uveíte anterior crônica, em 55%. Perda da acuidade visual em pelo menos um olho e vasculite retiniana foram observadas por outros autores(2,13).

O diagnóstico da síndrome CINCA é essencialmente clínico. Recentemente muitos avanços têm sido alcançados, com base na medicina molecular e na genética(15). A recorrência familiar sugere o caráter esporádico da doença(1,6). Apesar das semelhanças clínicas com as infecções intra-uterinas ou neonatais, a pesquisa de vírus, fungos, bactérias e imunodeficiências tem sido negativa(4). Causas ambientais, defeitos de neutrófilos, desregulação da função das citocinas e alterações de cartilagem têm sido aventados como etiologia da síndrome(2,3,8,10). A ativação de alguns marcadores de neutrófilos como o CD10 pode ser a causa das alterações inflamatórias típicas de alguns pacientes com a síndrome CINCA(5). Estudos anteriores indicaram que os neutrófilos poderiam desempenhar papel central na patogênese da doença(3).

Aproximadamente 50 mutações independentes no gene CIAS1 (cuja expressão é alta em células polimorfonucleares e condrócitos)(1) foram encontradas, todas afetando o éxon 3(7,11,15). A criopirina, produto do gene CIAS1, também tem sido implicada na regulação da inflamação mediante a ativação do fator nuclear kappa beta, da regulação de interleucina 1 e de outras citocinas(1,5,7,9,15). Prieur et al.(3) já haviam demonstrado, in vitro, a inibição da proliferação de condrócitos pelo soro de alguns pacientes portadores da doença, sugerindo, como em outros estudos, que a cartilagem seria o órgão-alvo da inflamação na síndrome CINCA(10).

Nos exames complementares, observam-se anemia hipocrômica, leucocitose com predomínio de neutrófilos e eosinófilos, plaquetose e elevação de provas de fase aguda(2,4,8). A eletroforese de proteínas pode mostrar hipergamaglobulinemia policlonal (IgG, IgM ou IgA) (3-5). A dosagem de complemento sérico e de imunocomplexos circulantes não mostra alterações significativas(2,3,8,10). O líquido cerebroespinal geralmente é normal(12), mas pode haver aumento de celularidade(2) principalmente eosinorraquia, e/ou aumento de proteínas(2). O exame anatomopatológico em medula óssea, fígado, pele e linfonodos demonstra processo inflamatório crônico inespecífico e presença de eosinófilos(3). No exame histológico da membrana sinovial, observa-se também um processo inflamatório discreto com infiltrado perivascular constituído por neutrófilos, eosinófilos e mastócitos. Ocorrem, ainda, necrose focal e proliferação desorganizada de condrócitos(10).

As imagens características da doença que sugerem o diagnóstico são vistas nas extremidades distais dos ossos longos, comprometendo em freqüência decrescente os joelhos, tornozelos, punhos e cotovelos. O achado radiológico mais consistente nos segmentos envolvidos são as metáfises largas e em copa, cartilagens de conjugação fragmentadas e epífises aumentadas com calcificação irregular. É constante o aumento no volume das patelas, observando-se ossificação prematura e grosseira. Entre as complicações, pode ocorrer fratura óssea espontânea conseqüente à desmineralização óssea. Há relatos de degeneração óssea para condrossarcoma(4,10). As alterações radiográficas ocorrem em aproximadamente metade dos casos durante o primeiro ano de vida. A paciente relatada apresentou as alterações clássicas nos joelhos, tornozelos, punhos, cotovelos e fragmentação das epífises dos calcâneos. A RM das articulações mostra aumento no volume, sem comprometimento sinovial importante(4,8,10).

Fontanelas amplas, com retardo no fechamento e ossos wormianos, podem ser vistas na radiografia do crânio. A TC e RM de crânio freqüentemente são normais, porém podem mostrar alargamento ventricular com atrofia cerebral e aumento dos fluidos nos espaços extra-axiais, calcificações da foice e dura-máter(2,12).

O principal diagnóstico diferencial a ser feito é com a artrite idiopática juvenil (AIJ)(10,11) e a da forma sistêmica, pois ambas são de diagnóstico essencialmente clínico e apresentam aumento das provas inflamatórias, leucocitose, plaquetose e anemia. Neste subtipo ocorrem surtos febris e exantema cutâneo típico. As lesões são maculopapulares eritematosas e fugazes, afetando todo o corpo, mas mais localizadas em tronco e membros e exarcebam durante os picos febris. A artrite é, geralmente, poliarticular, simétrica e aditiva, acometendo tanto grandes como pequenas articulações. O exame radiológico pode ajudar a diferenciá-la. A principal diferença radiológica é que na síndrome CINCA as alterações ocorrem nas cartilagens de crescimento, epífises e patelas, enquanto as lesões da AIJ comprometem as superfícies articulares(3). Outra diferença é que o envolvimento do SNC e o retardo mental peculiares à síndrome CINCA não ocorrem na AIJ(4,10).

Os outros diagnósticos diferenciais devem ser feitos com doenças do período neonatal, como infecções crônicas intra-útero, hipergamaglobulinemia D (que pode cursar com artrite, febre e exantema), síndrome de Sweet (dermatose neutrofílica febril), FAPA (febre periódica, adenopatia, faringite e estomatite aftosa), histiocitose, mastocitose, rubéola neonatal de início tardio, síndrome de Muckle-Wels (exantema urticariforme, artrite e surdez), Wissler Fanconi e febre familiar do Mediterrâneo(3,11,12).

O tratamento é, freqüentemente, empírico, pois ainda não existe consenso. Antiinflamatórios não hormonais e corticoesteróides têm sido utilizados com resultados variáveis(3,4,14). Os corticoesteróides têm se mostrado eficazes no alívio da dor e dos picos febris, como ocorreu no caso descrito, mas sem modificação das provas inflamatórias, das alterações cutâneas e articulares. Alguns autores têm utilizado precocemente drogas imunossupressoras, como metotrexato, ciclofosfamida, clorambucil, D-penicilamina, ciclosporina(12), azatioprina(2,10) e sais de ouro, e imunomoduladores (gamaglobulina endovenosa), com o objetivo de bloquear a evolução da doença, diminuir a atividade inflamatória, permitir o crescimento e desenvolvimento adequado da criança e diminuir seqüelas(4). Entretanto, ainda não se tem evidências de que esses medicamentos modifiquem a evolução da doença(2-4,10). A regulação pela CIAS1 sugere que um bloqueador de receptor de inter-leucina 1 possa constituir um tratamento eficaz, entretanto mais estudos são necessários para melhor identificar essa via antiinflamatória(1,7,14). A terapia biológica está em estudo experimental; o etarnecept foi usado recentemente em uma criança de 4 anos de idade, por 6 meses, com melhora importante do quadro articular e diminuição da freqüência dos episódios febris, sugerindo o provável papel do TNF alfa (fator de necrose tumoral alfa) na fisiopatologia da doença(14). A fisioterapia com hidroterapia e a terapia ocupacional com uso de órteses constituem parte importante no tratamento dessa doença(2,4).

O prognóstico da síndrome CINCA é pior em pacientes que apresentam a doença no período neonatal. Alguns autores sugeriram que a severidade dos sintomas poderia ser influenciada pelos locais de mutação no gene CIAS1(9). O curso progressivo natural da doença é típico, levando à incapacidade motora e adaptativa(14). Incapacidade funcional significativa ocorre em mais de 50% dos pacientes. Em 100% das crianças, ocorre retardo de desenvolvimento pôndero-estatural. O óbito ocorre na adolescência ou no adulto jovem em 20% dos pacientes por infecção, complicações neurológicas ou por amiloidose secundária(3,6,12).

Em virtude de a etiologia e a fisiopatologia da síndrome CINCA permanecerem incertas e sendo poucos os casos relatados na literatura mundial, há dificuldade na padronização dos critérios diagnósticos e tratamento. Este relato de caso tem como objetivo alertar o reumatologista para este diagnóstico diferencial da AIJ sistêmica que, apesar de raro, pode acarretar incapacidade funcional severa. O diagnóstico e a instituição terapêutica mais precoce podem minimizar as seqüelas. Os constantes avanços da medicina genética poderão melhorar a prevenção e o tratamento da síndrome CINCA.

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